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Data
1 July 2016
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Offret (Tarkovsky, 1986)

Offret – em português, O Sacrifício – é a obra crepuscular de Tarkovsky, a ditar um encerramento de uma carreira imaculada, portentosa e fascinante. Esta é uma obra explicitamente dedicada ao filho do realizador, ou pelo menos assim está gravado em filme; no entanto, poder-se-ia dizer que é um labor de profunda admiração pelo contra-parte Sueco, Ingmar Bergman – um encómio que encontraria na Suécia uma simetria amigável, ainda que não transparecesse tão literalmente ao grande ecrã. Dir-se-ia, mesmo, um tributo absolutamente frontal e ao alcance pleno do espectador logo pela equipa artística envolvida.

Erland Josephson (Alexander), protagonista em Offret e constante prioritária no elenco de Bergman, era um dos actores favoritos do cineasta; aqui encara o papel de jornalista, ensaista, ex-actor, crítico, estudante da estética e da filosofia, num breve aceno de sofisticação intelectual enquanto cenário abstracto da película. Um toque a enquadrar com a majestosa mão de Anna Asp nos visuais sumptuosos que cria enquanto directora artística, também ela ligada a Bergman, notoriamente através de Höstsonaten, onde o cenário casa perfeitamente com o tom teatral de ambas as colaborações. A mais importante parceria de Tarkovsky neste tributo será, talvez, com Sven Nykvist, o seu cinematógrafo favorito e um assíduo na fotografia do cinema de Bergman. Talvez dos mais avassaladores matrimónios no cinema, esta é uma combinação apenas tão brilhante como expectável, reunindo o entendimento genial de fotografia, de luz, sombra e cor. Efectivamente, a pós-produção de Offret envolveu da parte deste duo uma redução de cor significante, numa forma criativa de criar toda uma aura onírica em certos segmentos, já um traço mais familiar de Tarkovsky (a título de exemplo, com Zerkalo e Stalker). Por outro lado, a ritmicidade intensamente pausada e demorada que habitualmente pende na acção do realizador Russo estará ainda mais delineada pelos vagarosos tracking shots de Nykvist, permitindo-se a preencher os escassos 115 planos do filme com o sentimento autêntico de passagem no tempo, a absorção inescapável do esplendor cinematográfico enquanto linguagem, a contemplação necessária do espectador, e mesmo o plano mais longo da carreira de Tarkovsky, após os créditos iniciais, a contar mais de 9 minutos. Para que restem ainda menos dúvidas no intento em penetrar a obra do seu contemporâneo, Tarkosvky vai ainda buscar Daniel Bergman (filho do cineasta) para o trabalho de assistente de realização.

Offret procura ser uma obra crítica da desvirtuação do espírito humano com a modernização. Atenta neste sentido de várias maneiras, seja pelo artifício teatral da disposição e direcção das personagens em cena (espelhado nas múltiplas referências a Shakespeare e Dostoyevsky), pela renegação ao espaço materialístico, pela violência do Homem moderno, pintada em cores de hipotético holocausto nuclear, pela representação da oferta suprema do voto a Deus (tematizada pelas recorrências da Adoração dos Magos, de Da Vinci, assim como pela Paixão Segundo São Mateus, de Bach), que ao mesmo tempo é ironizada pela entrega por ritos pagãos. Verdadeiramente, o sacrifício. Do conforto, do hedonismo artístico, da importância material e até mesmo de tudo o que nos é querido para impedir o curso destructivo da mão humana. E com este, uma espécie de triunfo da acção definitiva sobre a palavra e o intelecto circulares; preconizada cedo desde o longo tracking shot onde Alexander se queixa ironicamente da inutilidade das palavras num extenso monólogo. E concretizada por completo na contradição muda do clímax ardente, irracional e inexplicável senão para o protagonista, cujo intento não pode ser reduzido a palavras.

Rui Paulino

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