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O Sal da Terra (2014)

“Um fotógrafo é alguém que literalmente desenha com luz.

Um homem que escreve e reescreve o mundo com luzes e sombras.”

O Sal da Terra é um documentário biográfico sobre a vida e a carreira fotográfica de Sebastião Salgado. E, mais interessante que esta sucinta descrição, é também o portento de uma visão em duas lentes. Curioso quando o cinema toma o retrato da fotografia, pois é como uma homenagem feita a um parente ancestral. Contrariamente ao que possamos entender, esta não é uma dissecação do método, nem tão-pouco uma aula histórica apenas. Se não só um ode à fotografia, através desta um aceno demorado aos recessos menos conspícuos da humanidade e do planeta.

“Quando fazemos um retrato, não somos só nós a tirar a fotografia. A pessoa oferece-se a nós.”“Quando fazemos um retrato, não somos só nós a tirar a fotografia. A pessoa oferece-se a nós.”

Começando pela primeira homenagem, devo dizer que não há cinematografia tão forte como este “antepassado”. Se somos persistentemente deslumbrados pela mestria gráfica na conjugação entre luz e sombra, é a composição de Salgado que cria autênticos quadros cuja imaginação, intuição e oportunidade capturam um conjunto tão surreal que dir-se-ia gravura a carvão. Fruto dum imaginário louco a preto-e-branco, somos presenteados com enquadramentos fantásticos, de uma criatividade e disposição visual assombrosas, que no entanto, encerram nos seus limites um murmúrio reverberante da história da humanidade por tempos e locais distantes até uma proximidade íntima. Por vezes, perto demais para se manter confortável em nosso torno. Por vezes, um peso inominável no nosso olhar, que demarca a nossa impotência e angústia perante as pegadas mais tristes que a humanidade deixou no planeta e em si própria.

Se há vórtice mais visceral neste documentário, será justamente o apelo às situações mais extremas da condição humana, denunciadas ao mundo pelo olhar acusador da câmara fotográfica. Frequentemente somos confrontados – bombardeados até – com exemplos de desastre, penúria e outros tantos flagelos pela comunicação social, de tal modo que o impacto se dilui pelos números e estatísticas sobre-representados. Por isso, são de magna importância estas obras, em que a extensão da tragédia nos é conectada a um retrato genuinamente humano.

”A única escravatura era a ideia de enriquecer.”

Mas quero ressalvar que O Sal da Terra não se cinge a um registo pregador e uni-dimensional destas realidades. Daqui retiramos a união indissociável da beleza e do desespero, do fantástico na crueldade, da maravilha na tristeza, da compaixão no meio do ódio, da lugubridade em conivência com a luz, para formular o derradeiro retrato das múltiplas camadas da humanidade. Percorremos obras como Outras Américas, Trabalhadores, e Êxodo, com o singular poder de nos deitar abaixo de tão carregadas que podem ser, até que somos justamente retornados à tona de água pela mão generosa do Instituto Terra, projecto ambicioso de reflorestação da mata atlântica iniciado pela família Salgado. E daqui, o olhar fluir novamente para a pureza libertadora do planeta em si, através da disposição límpida de Génesis, o derradeiro tributo à beleza do planeta e último projecto de Sebastião Salgado com 9 anos de duração, hoje em exposição na Cordoaria Nacional até 2 de Agosto.

“E acima de tudo, constatei que faço tanto parte da natureza como uma tartaruga, uma árvore ou um seixo…”

Se fiz parecer este filme uma simples exposição fotográfica mecanizada, adianto a corrigir-me, pois as fotografias são exibidas numa sequência saudável em ritmo, alternando a expressividade da arte com a expressividade do rosto do seu autor, que contracena juntamente com as suas obras, enquanto oferece um contexto vital para complementar a nossa compreensão. Para dar máxima liberdade às palavras de Salgado, Wenders coloca-os aos dois numa câmara escura, de forma a esconder que o estava a filmar. E se o contexto que flui dos lábios do fotógrafo é importantíssimo para a experiência visual do seu trabalho de vida, não devemos também descurar a história contada por Wim Wenders, tanto narrada oralmente, como pela mão realizadora, co-dirigida pelo filho, Juliano Salgado. Seja em planos magistralmente articulados, na composição musical, ou na montagem subtil – facto que retém louvor, se tivermos em conta as várias perspectivas artísticas presentes no filme que poderiam destoar entre si –, a força do documentário encontra-se não só no documentado, como na narrativa que produz.

De facto, esta não é uma visão impessoal e fria dum relato factual, mas sim uma história contada pela realização, pela narração de Wim, e pela narração de Salgado, por sua vez, sobre a narrativa das suas fotos; um complexo enredado de quase intermináveis perspectivas, como um olhar a entrever-se pelo espelho que simultaneamente intersecta a História e o presente: nós. A audiência. A última plataforma para contar esta história e reproduzi-la, para o outro e para nós próprios.

Rui Paulino

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