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Data
30 October 2014

A Parafília e o Cinema: Peeping Tom (1960)

Em 1964, Kitty Genovese, uma nova-iorquina de 29 anos, era brutalmente assassinada no meio da rua, com toda a vizinhança a assistir de camarote. Nascia o efeito de difusão de responsabilidade, mas mais assustador que isso, ninguém fechou os olhos, ou tentou não observar, todos quiseram ver o esgar aterrorizado e os gritos de alguém profundamente assustada, todos foram voyeurs de algo, no mínimo, desagradável: a morte.

Apenas quatro anos antes nascia um dos mais brilhantes tratados cinematográficos psicológicos sobre a mente, naturalmente instintiva, do homem: Peeping Tom, de Michael Powell.

Michael Powell era à data, um dos mais prolíficos realizadores britânicos, sendo dono de um estatuto e prestígio, tanto perto da crítica como do público. De repente tudo mudou e a sua carreira foi completamente trucidada, tudo porque nos obrigou a contactar com a nossa natureza, dirigida por dois drives fortíssimos; o sexo e a agressão.

Em Peeping Tom – nome comum dado a um voyeur, ou escopofílico, definido como alguém que tira prazer ao olhar – somos confrontados com as nossas próprias perversões voyeurísticas. Não será esse processo que nos faz ver filmes? Não seremos todos voyeurs tirando prazer com o que se passa no grande ecrã? A resposta parece óbvia.

Aqui na obra de Gian Giacomo Caraglio já é aceitável?

A história de Peeping Tom centrava-se em Mark Lewis (Carl Boehm), um jovem que trabalhava num estúdio de cinema, na parte da iluminação, e que tinha como melhor amiga uma camera de filmar, da qual nunca se separava, dizendo que estava a realizar um documentário.

A obsessão que ele demonstrava por observar emoções nos outros – dimensão magistralmente explorada por Powell – tinha que ver com a relação disfuncional que teve com o seu pai – um cientista que manipulava as emoções para observar as reações de medo no filho (a sua cobaia) – isso não é estranhamente idêntico ao que os realizadores de filmes de terror tentam fazer?

O que começou por chocar a opinião pública sobre este filme era o facto de esse pai ser representado pelo próprio realizador, que também usou o seu filho para interpretar Mark, quando este era criança. Algo que na altura foi considerado de doentio.

O que será doentio? A utilização do filho?  A manipulação? O cinema no geral? A visão conservadora da altura não permitiu ver mais além. O filme era muito mais que uma repressão sexual freudiana, resultado de uma relação parental disfuncional, esta obra fala-nos da nossa sociedade hiperbolizada num serial killer, em plena desconstrução.

Sim, esta é a segunda camada da cebola, desconstruir um serial killer na perfeição. Alguém que se tornou um sociopata devido à sua infância e que, por falta de afeto em tenra idade, transfere os seus afetos e as suas necessidades para a lente da sua camera, transportando a vontade doentia, passada pelo seu pai, de captar em filme a reação de medo dos outros.

É aqui que começa por se afastar de um outro filme da época: Psycho, de Hitchcook. Hitchcook manipula através da imagem, procurando criar reações. Powell meta-manipula, criando uma obra meta-analítica da sociedade – sociedade que por ser confrontada com a sua imagem mais vil, nunca a aceitou.

Mark por ter sido toda a vida subjugado pelo pai, criou uma parafília que ia muito para além do voyeurismo patológico, ele alimentava-se da última imagem, quando a vítima, subjugada pelo seu objeto fálico pontiagudo (o tripé da camera), se observava enquanto morria, numa espécie de espelho côncavo que ele colocava na objetiva. Essa imagem, nós não víamos, nem precisávamos de ver, mas era esse desejo de ver que, à semelhança do assassinato de Kitty Genovesse, nos fazia ir à” janela”, e observar em completa conivência, para só no final, quando as luzes se apagam, nos irmos queixar da repulsa e do nojo que aquele género de situação nos causa. Porquê? Porque nós conseguimos sublimar os nossos impulsos mais animalescos, um serial killer não. Alguém com uma profunda incapacidade social, aliado a um desejo intratável de observar sexo e morte? O que nos distingue deste serial killer? Conseguimos reprimir o suficiente para vivermos em sociedade.

Por outro lado, a ideia de mostrar compreensão por alguém que matava mulheres a sangue frio – cena exemplarmente representada na 1ª cena da obra – só gerou mais revolta na crítica, que “assassinou” artisticamente Michael Powell.

Em Peeping Tom, nada foi fruto do acaso, o filme dentro do filme montado pela personagem principal era absolutamente genial. Mark Lewis sabia, mais que isso, queria ser apanhado, não se preocupando em esconder devidamente as pistas. Caraterística partilhada pelos serial killers – basta falar de Zoodiac, que aterrorizou a América -, para quem pouco importa a morte, ou se são apanhados, apenas querem deixar uma marca, como se de um jogo se tratasse, e precisam disso para se alimentar.

A um outro nível, Michael Powell procurou criar um laço entre este sociopata e a sociedade, situação representada pela relação que Lewis estabeleceu com Helen Stephens (Anna Massey), uma jovem rapariga que se apaixonou por este estranho homem, que nunca teve nenhum contacto com a sociedade, tirando através dos seus filmes. Esse afeto que Lewis nunca teve, tornou Helen como uma tábua de salvação. Mas será que isso chegaria para o mudar? Ver o filme poderá tirar as dúvidas, ou adensá-las.

No geral, Peeping Tom tem várias camadas, analisadas sobre várias perspetivas, a visualização repetida pode servir para que mais interpretações possam ser feitas. Em relação aos envolvidos no filme, poucos ousaram falar sobre ele depois. Certo é que, 54 anos volvidos, é consensualmente considerado um grande filme – entrou na lista de Roger Ebert. Nada será melhor do que resumir a obra com uma frase com a qual culmina e que é representativa da ambivalência da mesma:

“Good Night Dady. Hold My Hand” – Michael Lewis

 

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