Boy Meets Girl (1984), de Leos Carax
Ingmar Bergman, Yasujiro Ozu, Jim Jarmusch, Satyajit Ray – o Espaço Nimas, em Lisboa, é hoje uma lufada de ar fresco no panorama de qualquer cinéfilo. Para além da crescente adesão aos festivais dedicados à sétima arte – Indie, Doc, MOTELx, etc – os ciclos dedicados a realizadores clássicos parecem ser uma das apostas fortes deste ano. E assistimos também à proliferação de uma nova moda: as reposições de filmes clássicos em versão restaurada, como 2001: Odisseia no Espaço, Vertigo ou Lawrence da Arábia. Alguns destes passam pelas grandes salas, enquanto que outros destinam-se a sessões especiais, como as apresentadas pelo Nimas – que nos presenteia agora com as duas primeiras longas-metragens do mestre francês Leos Carax: Boy Meets Girl (1984) e Mauvais Sang (1986), ambas em versão restaurada.
Antes de mais, uma nota preliminar: Leos Carax tinha 24 anos quando realizou Boy Meets Girl. Este facto torna-se assombroso quando pensamos no grau de ambição, maturidade e pormenor do filme. E se por vezes Carax tenta dizer mais do que consegue, é imediatamente compensado – e perdoado – pelo simples facto de estar a tentar dizê-lo. Nota preliminar nº 2: Leos Carax não é Leos Carax. Leos Carax é um anagrama para Alex Oscar, o seu verdadeiro nome. Referimos isto pela peça do puzzle que revela: o protagonista dos primeiros três filmes do realizador é “Alex”, desempenhado sempre pelo ator Denis Lavant – o que sugere um tom autobiográfico, ou pelo menos projetivo, aos filmes.
Boy Meets Girl é uma narrativa cruzada – dois desamores que se encontram. Aliás, a tradução portuguesa do título é pertinente: “Paixões Cruzadas”. Alex (Denis Lavant) é um jovem aspirante a cineasta – coincidência? – que acaba de ser deixado pela namorada. Mireille (Mireille Perrier) é uma jovem com tendências suicídas, que sabe dançar mas parece não saber amar. Também ela está na fase final de uma relação amorosa. Estas duas personagens não se conhecem, mas Alex assiste ao romper da relação de Mireille – por mero acaso – e mais tarde volta a encontrá-la numa festa. É nesse segundo encontro que Alex, desesperado por contacto, fica arrebatado e jura um amor quase tão alienado como a expressão de Mireille.
Embora assombrados pelo desamor, o desgosto destas duas personagens exprime-se de modos completamente diferentes. Alex torna-se um obcecado, ruminando à volta da sua ex-namorada – que visita sorrateiramente, e sobre o qual escreve nas paredes no quarto. Como qualquer obcecado, Alex vive numa falsa solução para com a angústia que sente – razão pelo qual o seu desamor difícil é rapidamente transformado em amor louco por Mireille. Já esta, depois da sua infelicidade romântica, não procura proximidade mas sim distância. Vemo-la sozinha em festas, sozinha a dançar, e sozinha nos seus pensamentos – mesmo quando acompanhada. A sua condição leva-a a um estado melancólico e frequentemente suicída. A posição-para-com-o-mundo destas duas personagens não podia estar melhor representada do que na cena final, onde Alex corre e abraça Mireille pelas costas – continuando esta a olhar fixamente para a frente.
O climax do filme, tanto em termos emocionais como artísticos, é atingido no diálogo entre Alex e Mireille, refugiados na cozinha da festa onde se encontram. O ambiente casual-mas-intenso desta primeira fase do encontro captura na perfeição o erotismo contido que a situação insinua. Os melhores momentos de texto surgem na forma de reflexões e confissões anormalmente íntimas: “Estou com um novo desamor. Não quero perder isso. O meu coração está orgulhoso da sua dor”. No total, o encontro dura 30 minutos, uma “curta-metragem” sobre amor e individualidade que vale por todo o filme. Carax consegue nessa meia-hora encaixar todos os seus fortes, tanto a nível de texto como de imagem.
Já falámos do nível verbal do filme, agora só resta tudo. Boy Meets Girl não existiria sem a ajuda do diretor de fotografia Jean-Yves Escoffier, responsável pela cinematografia das primeiras obras de Carax. Escoffier é o mágico que dá contexto à narrativa: nos longos travelings num corredor, enquanto ouvimos uma descrição de sexo oral pela ex-amante de Alex; num passeio onírico pelo rio, ao som de David Bowie – talvez o momento mais visualmente memorável do filme; na frenética declaração de amor de Alex a Mireille – as caras pouco iluminadas, lábios e olhos em destaque. Arriscaria dizer que o trabalho de imagem funciona ainda melhor no preto e branco (luz e sombra) de Boy Meets Girl que nas cores de Mauvais Sang.
O tributo de Carax à nouvelle vague é óbvio tanto temática como visualmente. Carax era crítico de cinema antes de realizar esta longa-metragem, e não deixa de ser interessante o modo como este filme parece um carta de amor tardia ao trabalho de mestres como Godard.
O anti-herói que é Alex, os diálogos existencialistas, a edição avant-garde, os cortes abruptos, o ritmo lento e trabalhado: tudo aponta para um filme realizado por um fã. Um fã que, felizmente, não se fica pela imitação. Os anos viriam a confirmar Leos Carax como um nome incontornável do cinema francês. A personagem de Alex voltaria a aparecer, tanto em Mauvais Sang como em Les Amants du Pont-Neuf. O que torna este Boy Meets Girl especial é a coragem de um jovem realizador a assumir as suas influências, mas deixando claro aquilo que Mireille confessa no filme: je suis ce que je suis.
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Jorge Machado
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Carlos Tarrafal
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Jorge Machado
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