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Data
25 August 2016
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Entrevista a Brontis Jodorowsky, protagonista de “A Dança da Realidade”

Todos os anos, o MOTELx faz o serviço público de nos trazer alguns dos maiores mestres do cinema de terror e fantástico. Com nomes como Dario Argento, Eli Roth e George Romero na lista de anos anteriores, o festival apresenta-nos nesta 8ª edição o último filme de Alejandro JodorowskyA Dança da Realidade. Alejandro Jodorowsky é um dos maiores nomes de culto do cinema atual. Com filmes como El Topo e The Holy Mountain, o realizador destacou-se como uma referência incontornável do cinema fantástico e surreal. Os seus filmes são marcados por uma enorme ambição visual e temática, geralmente desembocando em referências místicas e religiosas. Mais recentemente, o documentário Jodorowsky’s Dune conta a turbulenta tentativa (falhada) do realizador chileno a adaptar o clássico Dune para o grande ecrã – mais tarde adaptado por David Lynch.

A Dança da Realidade destaca-se por ser um reencontro entre pai e filho no cinema: o ator protagonista do filme é Brontis Jodorowsky, filho de Alejandro. Brontis tinha já participado num filme do pai, El Topo, em 1970. Este A Dança da Realidade é uma metáfora autobiográfica complexa, onde Brontis representa o pai do realizador, e avô do ator, Jaime Jodorowsky. Portanto, o filho do realizador representa o pai deste, numa tentativa de sarar algum unfinished business familiar.

Numa entrevista exclusiva ao CineSpoon (aqui), soubemos pela organização do festival que Alejandro Jodorowsky estava ocupado a preparar o seu próximo filme. No entanto, o MOTELx teve o prazer de ter presente Brontis Jodorowsky – que apresentou o filme e, mais tarde, se disponibilizou para esta conversa invulgarmente pessoal. A sua postura não deixou dúvidas: seja lá qual for a magia que o realizador chileno tem, o filho não lhe fica atrás. Entrevista por Alexandre Vaz.


Alexandre VazO título deste filme, “A Dança da Realidade”, é especialmente interessante tendo em conta a carreira do seu pai. “Realidade” parece ser um conceito complexo para um realizador com tantas influências surrealistas e místicas.

Brontis Jodorowsky – O título vem, antes de mais, de um romance que o meu pai escreveu, La Danza de la Realidad. A primeira parte do filme é uma adaptação do primeiro capítulo desse livro, juntamente com partes de um outro dele, El Niño del Jueves Negro. E o que vemos nesse primeiro capítulo – e o que vemos no filme, de um modo mais subtil – é que certos acontecimentos são bons, mas são maus. Mas são bons. (Risos) [No filme] preciso de exprimir a minha raiva, por isso atiro uma pedra para o mar. Mas isso provoca um tsunami, que é mau porque mata os peixes todos. Mas é bom porque alimenta as gaivotas. Mas é mau porque as gaivotas são enxotadas pelas pessoas. Mas é bom porque as pessoas agora podem comer. (Risos) Noutra cena, a criança faz o gesto simpático de dar os seus sapatos a um rapaz pobre. Mas o rapaz acaba por morrer devido a estes sapatos – tropeça numas pedras e afoga-se. Acho que este tema é sensível para o meu pai, principalmente a história do rapaz com os sapatos, que é uma história verídica. Teve um grande impacto nele, porque fê-lo sentir-se culpado pela morte desta criança, mas o gesto em si era bondoso. É a isto que ele chama “a dança da realidade”. E também porque na dança há sempre algo de alegre, e um sentimento de comunhão para com os outros.

AVÉ interessante dizer isso, já que no filme há cenas bastante dramáticas acompanhadas por música festiva.

JD – Exacto, é o princípio do contraponto. E a vida é assim mesmo – passamos por uma experiência trágica, e dez anos depois rimo-nos dela. Portanto esses contrapontos foram um modo de tentar capturar diferentes visões da mesma situação. De certa forma, é a metáfora clássica do copo meio cheio e meio vazio.

AVE também no filme está constantemente presente o humor e o drama, o que ajuda a criar uma sensação de dança.

JD – Absolutamente. E isso dá-lhe ritmo. E esse ritmo é necessário. O filme tem duas horas e dez minutos, e qualquer pessoa pode gostar ou desgostar dele, mas ninguém consegue ficar aborrecido. Porque está tanto a acontecer, a todo o momento.

AVO Brontis já referiu noutras ocasiões como este filme é extremamente pessoal – a personagem que desempenha é a do seu avô, pai do realizador [Alejandro Jodorowsky] – e como há um objectivo terapêutico para este filme.

JD – Sim, sem dúvida. O objectivo é mesmo esse.

AVPara além do aspecto terapêutico para o seu pai, o filme teve algum impacto do mesmo estilo em si?

JD – O filme é claramente para o meu pai, e sobre os problemas que ele teve com o seu próprio pai. Mas quando há problemas deste estilo entre elementos de família – por exemplo ressentimento –, isso percorre na genealogia, é transmitido. Tudo o que não é resolvido é simplesmente passado para a próxima geração. E um dia alguém decide resolver esse problema, porque esse tipo de problemas criam…

AVTensão?

JD – Pior que tensão! Uma pessoa pode ter um cancro por herdar o ódio de uma mãe pela sua mãe. E depois, duas gerações à frente, toda a vez que uma mulher der à luz será uma dor tremenda – porque tornar-se “mãe” é exactamente entrar na zona de conflito.

AVE para além da vertente psicológica, o filme teve algum impacto em si como ator?

JD – Como ator, o que realmente fez a diferença não foi tanto A Dança da Realidade, mas sim a última peça de teatro que fiz com o meu pai, El Gorila. Começámos em 2008, e representei-a em França, Espanha, Londres, Santiago, Buenos Aires, e em quatro línguas diferentes – italiano, inglês, francês e espanhol. E isso foi mais impactante para a minha experiência como ator. Misteriosamente, fui depois convidado para protagonizar num filme mexicano chamado Táu, de Daniel Castro Zimbrón, e imediatamente depois o meu pai convidou-me para fazer A Dança da Realidade. E desde aí tenho feito muito pouco teatro.

AVDevem ser experiências radicalmente diferentes, a do cinema e do teatro.

JD – É muito diferente, sim, mas é algo que se desenvolve por si. Continuarei a fazer teatro, porque adoro, mas talvez na minha idade possa começar a fazer mais cinema. Acho que é o momento certo. Esse era o meu sonho, quando era muito novo.

AVRecorda-se da sua experiência como ator em El Topo [de Alejandro Jodorowsky]? Tinha apenas 8 anos na altura.

JD – Sim, claro que sim! Foram filmagens muito divertidas, estava a fazer um western, com armas, e estava muito interessado nos efeitos especiais – como se fazia o sangue explodir depois do tiro, de que é que é feito o sangue… E estava muito orgulhoso do meu pai me pedir para participar num filme dele, levei isso muito a sério. Pensei que, já que sou filho dele, vou ter de ser um ator ainda melhor. Porque toda a gente vai dizer “para ele é fácil, é o filho do realizador”.

AVSentiu que teria de se esforçar ainda mais, para ultrapassar esse preconceito.

JD – Exacto. Muito gente acha que ser o filho do realizador facilita as coisas, mas acho que é precisamente o contrário.

AVJá tem planos para voltar a trabalho com o seu pai?

JD – Ah sim, já estamos a trabalhar na sequela deste A Dança da Realidade.

AVE sente que a relação com o seu pai mudou de algum modo com a filmagem deste filme?

JD – Sim, sem dúvida. Foi uma experiência muito forte. Foi marcante por estar a representar o pai do meu pai… Mas ao mesmo tempo, continuo a ser o filho do meu pai. A nossa relação foi sempre marcada por etapas centradas à volta de uma peça, ou de um filme… Por arte em geral.

AVUsaram sempre a arte como ponte para comunicar.

JD – Sim, somos uma família artística. Aconteceu naturalmente: tornei-me um artista, independentemente do meu pai, e o meu irmão Adan fez a música para este filme – e também é um artista independente, um músico, cantor e produtor. Mas agora tenho 50 anos, e o meu pai 85, por isso nesta fase já somos dois artistas independentes que se amam e a colaborarem num projecto.

AVE talvez a temática do filme o tenha feito reflectir na sua própria vivência como pai de duas filhas.

JD – Absolutamente! Porque esta ideia de “pai” no filme não está apenas ligado a uma pessoa.

AVÉ de certo modo o arquétipo do pai?

JD – É uma ideia construída por uma genealogia de pais, geração após geração. Neste caso, com algum ressentimento.

AVSendo isto um filme de Alejandro Jodorowsky, é-me difícil escapar à tentação de pedir por interpretações de alguns dos elementos simbólicos. Vou-lhe só perguntar por um deles: como interpreta a personagem da mãe, que durante todo o filme canta em vez de falar?

JD – Este filme é muito sobre a temática de realização pessoal, e na “vida real” a Sara [avó de Brontis] foi uma mulher muito submetida à autoridade exterior – como está representado no início do filme. Aos 16 ou 17 anos ela tinha uma grande paixão pela ópera, e disse aos pais que queria ser cantora. O pai bateu-lhe e disse para esquecer esse sonho. O filme possibilitou realizar esta mulher, que viveu frustrada, e transformá-la. É por isso que ela canta no filme, porque a Sara “real” sempre sonhou em ser cantora. Do mesmo modo que transformámos Jaime [avô de Brontis], ao torná-lo num homem carinhoso – o que altera bastante a mitologia da nossa família.

AVFico curioso por mais interpretações, mas sei que poderíamos ficar horas nisto…

JD – E também há um certo desinteresse em dar demasiadas respostas, demasiadas “chaves”.

AVPorque deveríamos criar a nossa própria interpretação?

JD – Sim, até porque a beleza de uma obra de arte – especialmente uma obra “sagrada”, como uma catedral ou a Bíblia – está na interpretação. Na tradição judaica, o trabalho é um de constante interpretação. Eu diria que a interpretação é a grande actividade da nossa mente. É o que fazemos a todo o momento. Olhas para isto [aponta para cinzeiro] e interpretas como um cinzeiro. Porque o teu cérebro descodifica as luzes, as formas, e diz “cinzeiro”! Mas um nível mais elevado disso é quando encontras um símbolo que não entendes, e aí trabalhas em construir uma interpretação própria. A interpretação mais bela e mais útil para ti! Falei sobre o caso da Sara porque isso foi mais uma motivação que uma interpretação. Mas não gostaria de interpretar os leprosos [do filme], por exemplo, porque estaria a roubar-te da oportunidade de criar uma interpretação própria – aquela que seria a mais útil para ti. É necessário entrar na obra de arte, e este filme é uma janela aberta para fazer parte de algo.

AVÉ, de um certo modo, um exercício projetivo.

JD – Absolutamente, absolutamente.

AVSuponho que diria que todo o trabalho do seu pai tem essa característica?

JD – Sim. Os filmes são como sonhos. Tudo o que sonhamos faz parte de nós. Se sonhamos com a nossa mulher, ela representa uma parte de nós. Se sonhamos com um monstro que nos quer comer, é uma parte nossa que nos quer chamar a atenção. Por isso quando fazes um filme estás a projetar-te a ti mesmo: todas as personagens, todas as luzes, todas as cenas – tudo isto é o realizador.

AVQual foi o aspecto mais difícil de executar neste filme, como ator?

JD – Provavelmente ter de andar de cavalo, nunca o tinha feito. Era um cavalo muito forte, e tive apenas um dia para me familiarizar com ele. Mas como se pode ver no filme, acabámos por “dançar” juntos. Mas houve tantas outras coisas: as lutas, o subir da corda, o ser agressivo com a personagem da criança sem ser agressivo com o ator em si… Todos os dias era um desafio novo. Mas só nos conseguimos medir quando nos medimos perante um obstáculo, como diria [Albert] Camus. Como ator, este papel foi uma benção.

AVÉ interessante mencionar Camus – do qual sou muito fã –, porque…

JD – É a primeira vez que o faço ao falar deste filme. Se calhar é por gostares dele que o senti subconscientemente! (Risos)

AVTalvez! (Risos) Mas lembrei-me do famoso conceito de Absurdo, sobre o qual Camus tanto escreveu. E estava a pensar como este filme, e muito do trabalho do seu pai, lida constantemente com o “absurdo” de um modo muito optimista.

JD –  Absolutamente, estás totalmente correcto.

AVÉ um Absurdo bastante colorido, o dos Jodorowskys. (Risos)

JD – Uma das frases que corre na nossa família é que “tudo o que acontece é sempre pelo melhor”. Como mostra A Dança da Realidade, todas as situações terríveis são transformáveis. E claro, a vida é bastante colorida, embora a nossa sociedade às vezes nos tente convencer que só existem cinzentos. Mas acho que abrindo os olhos é possível apreciar as cores. Infelizmente, temos perdido uma capacidade para contemplar. Uma vez, em Paris, decidi parar na rua e ficar a contemplar uma esquina. Só isso. E, de imediato, uma pessoa veio-me perguntar “está tudo bem, senhor?”. Porque as pessoas acham estranha esta experiência… Mas todos os místicos passam por uma fase de contemplação, porque os abre para o mundo.

AVMuito obrigado, Brontis.

JD – Obrigado eu, pela qualidade das perguntas.


Site oficial do filme: http://danceofrealitymovie.com/

Para além da ocasional crítica cinematográfica, este dandy moderno aprecia longos passeios, chá preto e aquele barulho que o bacon faz aquando do momento de fritura.