suddenlymythoughtshalt_03_300dpi

Pára-me de Repente o Pensamento (2014)

No início do século XX, Ângelo de Lima escrevia..

“Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento…

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára m cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado…
Pára e fica e demora-se um momento.

Pára e fica na doida correria…
Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço que essa noite explora…
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.”

A 20 de novembro de 1894, Ângelo, é internado no Centro Hospitalar Conde de Ferreira, diagnosticado com “delírio de perseguição”.

Neste centro, o realizador Jorge Pelicano documentou o dia-a-dia dos seus pacientes. O resultado é Para-me de repente o pensamento, uma exposição que pretende desconstruir os estigmas em torno deste tema. Na verdade, tudo se resume a uma rotina.

Estreado a 23 de Outubro, no cinema São Jorge, no âmbito do DocLisboa’14, este filme vem juntar-se aos excelentes trabalhos premiados, nacional e internacionalmente,  de Jorge Pelicano (Ainda há pastores – 2006 – e Pare, escute e olhe – 2010).

No hospício, utentes vagueiam pelos corredores e circulam sós. Rotinas que os arrastam para a realidade. É a vida que se repete num hospital psiquiátrico. Do mundo exterior, chega um ator (Miguel Borges) que procura o seu personagem para uma peça de teatro, submergindo no mundo dos esquizofrénicos.

Estas doenças não têm só grandes custos pessoais, mas também há ainda uma grande insciência sobre as mesmas. Filmar estas pessoas pode ser algo muito complicado, levantando alguns problemas éticos sobre a dignidade dos envolvidos. Jorge Pelicano consegue, em Pára-me de repente o pensamento, mostrar de modo exímio a humanidade e o quotidiano destes afligidos de doenças pisquiátricas.

Nos seus trabalhos, Pelicano, procura representar a realidade com a maior naturalidade possível. Um tema delicado, que pede uma abordagem igualmente cuidada. Nesse sentido, o realizador e a sua equipa fizeram grande trabalho de reconhecimento antes das rodagens. Após a familiariação, chegaram às 250 horas brutas de filme.

Se alguns dos doentes não gostam da situação em que se encontram, outros reconhecem o cuidado com que são tratados e não se põem sequer a questão de ir embora. Num processo que deverá ter sido demorado, o realizador conseguiu criar uma confiança mútua com vários pacientes desta instituição e mostrar vários exemplos de como é vivida a relação com a mesma, com a doença e com os outros.

Depois de um tal trabalho de inserção e de sustentação de uma base para com estas pessoas, é estranho que a meio do filme o realizador tenha sentido necessidade de as abandonar e de se dedicar ao processo criativo de um ator que surge de fora para ajudar numa peça que estava a ser montada como forma de terapia e de comemoração do aniversário do hospital. A atitude do ator para com os pacientes transparece condescendência, acabando por usar as pessoas de uma forma por vezes brutal e fazendo leituras demasiado literais e infantis do que ouve. Assim sendo, em conclusão, origina-se um fantástico documentário que por vezes se sente  incompleto sobre um tema controverso e de difícil abordagem.

Apesar de tudo, há muito que fica por perceber. Será possível ser-se feliz nestas condições?

A consciência e a dor são por vezes a força motriz do pensamento. O esforço e o conflito que supõem essas forças conduzem-nos à necessidade de, como o cavalo, perante um abismo, nos aferrarmos a solo firme para descortinar o estado que nos traz a alucinação do presente.

ARTIGOS POPULARES