Entrevista a João Monteiro, diretor e programador do MOTELx
No MOTELx, o terror é bem-vindo. 2014 marca a oitava edição deste Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa, que tem vindo a ganhar relevância com cada ano que passa.
O festival começa hoje, e o CineSpoon teve o prazer de estar à conversa com um dos diretores e programadores do evento, João Monteiro. Entrevista por Alexandre Vaz.
Alexandre Vaz – Antes de mais, parabéns pela 8ª edição do MOTELx, e obrigado pelos litros de sangue, gritos e mortes gratuitas com o qual nos banharam nos últimos anos.
João Monteiro – (Risos) E este ano vão ter mais ainda!
AV – Ainda bem! Queria só começar por citar o Hitchcock, que uma vez disse “conheço a cura perfeita para a dor de garganta – cortá-la”. O terror e o humor aparecem muitas vezes de mão dada, o que à primeira vista parece paradoxal, e a vossa programação tem vindo a reflectir isso desde a primeira edição. É justo dizer que no MOTELx ouvem-se tantos gritos como risos?
JM – Sim… O terror e comédia têm em comum o facto de serem géneros que provocam reacções físicas nos espectadores. Por isso faz todo o sentido que estejam juntos – e também faz sentido que muitos realizadores digam que são os géneros mais difíceis de fazer.
AV – O terror e o humor?
JM – Sim, tens de ter mesmo um domínio da coisa, um timing perfeito. Portanto não é descabido que estejam juntos, e ainda torna um realizador mais talentoso quando cria uma “comédia de terror” boa. Mas acho que nestes festivais de género o que acontece é que, mesmo nos filmes mais sérios, as pessoas muitas vezes reagem de uma forma nervosa, que é a rir.
AV – Como reacção ao terror?
JM – Exacto, acontece muitas vezes. Já ouvi muitas pessoas a dizerem-me “epá estava tudo a rir naquele filme”…
AV – “…e não era suposto!” (Risos)
JM – É engraçado porque as pessoas às vezes também não sabem como reagir. E essa é para mim a parte mais gira destes festivais: as pessoas embarcam num viagem, é a mesma lógica que numa montanha russa, e umas reagem a rir, outras ficam caladas o tempo todo. Mas mesmo às vezes quando vais ver um filme mau – que não é o caso no MOTELx (risos) – a reacção do público transforma a sessão num momento inesquecível!
AV – Para além do terror “puro”, o festival tem sempre apresentado uma dose saudável de terror cómico, ou simplesmente bizarro, como foi o caso de Tokyo Gore Police ou do ABC’s of Death, que consegue ir do gore ao surreal…
JM – O terror é mesmo uma indústria à parte. Meio marginal, digamos assim. Dentro disso há géneros e subgéneros, há fãs para todo o tipo de coisas, e nós temos de considerar isso também. Enquanto programadores pomo-nos sempre na posição de perguntar o que é que nós iríamos gostar de ver. E pensamos assim para o seguimento dos filmes, o tipo de filmes… Também para não – como é que eu hei-de dizer? – enjoar. (risos) Porque estar a passar só filmes de terror de manhã à noite… Às vezes nós até passamos alguns filmes mais polémicos para provocar algum tipo de discussão.
AV – O que é que seria um filme mais polémico, no vosso caso?
JM – Filmes que as pessoas não entenderiam propriamente como sendo de terror. Por exemplo, este ano passamos o último filme do Jodorowsky – embora o Jodorowsky seja difícil de pensar como um cineasta de terror ou de qualquer outro género que não seja dele próprio. No entanto ele abre essa lógica da janela do inconsciente…
AV – Que tem um paralelo com o terror.
JM – Tem tudo a ver com o terror! O verdadeiro terror, aquilo que podemos mesmo classificar como um filme de terror, é aquele que mexe exactamente com essas coisas primitivas ou primárias do nosso subconsciente. Não é propriamente o terror político, nem uma metáfora, ou um subtexto, etc. (risos)
AV – Isso se calhar cola bem com aquela frase do Stephen King, “um medo só é ultrapassável se o conseguirmos articular”.
JM – Sim! E hoje em dia já não temos de passar por rituais tribais de maioridade: o cinema de terror para muito pessoal é esse ritual. Principalmente para rapazes como eu, que nasceram e cresceram nos subúrbios, a lógica já era um bocado como a dos filmes de terror. A primeira vez que conseguimos dormir uma noite descansada somos adultos. (risos)
AV – Portanto há aí desde cedo uma ligação para com o estilo de cinema que te interessa.
JM – Sim, acho que sim – sempre houve. E o terror é sempre mais uma coisa do campo do fã do que propriamente do cinéfilo. Muitas pessoas que vão ao MOTELx são fãs absolutos do género, são conhecedores e são muito exigentes.
AV – Referiste há pouco o aspecto “marginal” do cinema de terror. E de facto a história do cinema de terror está cheia de filmes de série B, com baixíssimo orçamento… [JM – Já tem cem anos de história! O primeiro Frankenstein é de 1910…] Exacto, e parece ser muito um estilo de fãs para fãs. O cinema de terror ainda hoje tem de lutar por credibilidade artística, como se fosse um estilo “menos respeitável” academicamente?
JM – Academicamente já existe, principalmente nos Estados Unidos. Mas acho que é uma pergunta complicada porque… Ser marginal é o que lhe mantém um certo estatuto, e o que o faz competir à parte do resto do cinema. Mas as coisas mudaram muito, porque no início havia os realizadores que tinham o “azar” do primeiro filme ser de terror, e desse filme lhes correr muito bem, e depois ficarem fechados no género para sempre – o Carpenter, o Craven, malta dessa geração. Agora é ao contrário, tens tipos que querem mesmo fazer carreira só neste género – o Eli Roth, o Rob Zombie… É essencialmente uma questão geracional. Mas estávamos a falar da credibilidade do género. É um bocado como no rock: é aquela coisa que os pais não gostam, portanto é bom. (risos) Se os pais passarem a gostar e toda a gente passar a gostar, a coisa perde porque sempre foi uma lógica de identificação.
AV – De identidade de grupo?
JM – Sim, exacto. Nas escolas, os mais populares não veem filmes de terror. (risos) E os restantes arranjavam esta forma para comunicar uns com os outros. É um clássico da adolescência, não sei se agora ainda é assim porque as coisas mudaram muito. Mas no meu tempo não havia nada para fazer, havia muitos cinemas e dois canais de televisão…
AV – Na minha adolescência fazia com amigos o que nós chamávamos as “zombie nights”: íamos para casa uns dos outros só para ver filmes de terror.
JM – Exacto, é isso! E nós íamos ao clube de vídeo e escolhíamos os filmes pela capa…
AV – E hoje em dia, ainda escolhem filmes pela capa?
JM – (risos) Não, mas lembro-me que quando íamos ao Fantasporto e tinham avisos para os filmes “não aconselháveis para pessoas sensíveis”. [AV – E era a esses que iam.] E claro, eram esses que eu escolhia.
AV – O próprio MOTELx já fez algo do género, indicar o grau de intensidade dos filmes na programação.
JM – E ainda fazemos, é o nosso “menu”. Isso começou porque houve pessoas que começaram… Lembro-me de um casal que veio do Algarve e me disse “só cá estou hoje e amanhã, o que é que é o mais violento e horrível possível para ver?”. (risos) E há outro fenómeno para mim que é ainda mais interessante: a forma como o consumo mudou completamente a nível do género feminino-masculino. Agora são as mulheres que querem ver os mais violentos, vêem os mais violentos e vêm-me perguntar quais são os piores para irem ver. Enquanto que noto nos rapazes acontecer mais o “não gosto muito” ou “tenho medo”…
AV – Alguma explicação psicanalítica para isso?
JM – Acho que tem a ver com a mudança do papel da mulher na sociedade, no geral. Tem graça porque o terror, ainda por cima, sempre foi um género masculino. (risos) O papel das mulheres nos filmes de terror era o de serem asscream queens. Até que aos poucos alguns realizadores as foram colocando como as heroínas dos filmes – a Ripley do Alien, por exemplo – mas tiverem de sofrer muito antes. E até aos anos 80 contam-se pelos dedos as mulheres que realizaram filmes de terror. Neste momento começam a surgir muitas mulheres a escolherem o género para se manifestarem, e a fazerem filmes muito melhores do que os homens, que se foram desleixando um bocado. Por exemplo, o “melhor” filme deste ano na programação é o The Babadook, que é a primeira obra de uma realizadora australiana.
AV – Por acaso ia exactamente perguntar se havia algum favorito pessoal na programação. Seria o The Babadook, portanto?
JM – Esse é o favorito dentro do terror-terror, especificamente.
JM – Nós até tentámos trazer o senhor [Alejandro] Jodorowsky, mas ele está numa fase Manoel de Oliveira. Ou seja, fez um filme agora – ele tem 85 anos – e já está a preparar o próximo. Mas arranjámos uma solução porque o filho dele é o protagonista deste novo filme.
AV – Geralmente o processo de convidar estes ilustres é um trabalho demorado de negociação ou rapidamente os convidados aceitam por amor à arte?
JM – Depende muito. Há quem leve a coisa de um ponto de vista puramente comercial. Geralmente os americanos são os que mais fazem isso – gente como o Tobe Hooper, Carpenter, Wes Craver, e principalmente o George Romero, vivem muito de convenções. Na América há muitas convenções de terror onde os realizadores são pagos para lá estar, dar autógrafos, tirar fotografias… Mas eu acho que mesmo aqueles que vêm ao MOTELx com essa lógica mudam de atitude enquanto cá estão. É complicado, e nós temos tido muita sorte, porque temos de jogar com a agenda destas pessoas. Principalmente no cinema, onde de um dia para o outro cai ou começa um projecto, e lá se vai um nome da lista. Mas temos tido muita sorte, o que por um lado até é mau porque habitua-nos mal a nós e habitua mal o público. (risos) Fica sempre a expectativa de “quem é que vem este ano”…
AV – E este ano o MOTELx expande-se para lá do Cinema São Jorge, para o Teatro Tivoli BBVA. Esta expansão foi possível devido a uma maior adesão do público ao longo dos anos?
JM – Foi possível devido a muitas coisas, essa é uma delas. Nós o ano passado tivemos uma “explosão” de público. [AV – Foi o vosso topo?] Tem sido sempre! Outra das nossas sortes é que aumentamos o número todos os anos. E isso é bom porque ajuda a nível de apoios, etc. Quanto ao Tivoli, o que aconteceu é que o ano passado todas as sessões às sextas e sábados, entre as 21h e a meia-noite, estavam esgotadas. Não percebemos se havia público a ficar sem sessão, por isso este ano vamos fazer esta experiência para ver se de facto há mais gente. E depois também porque, para nós, é um sonho poder fazer um festival nos únicos cinemas históricos da cidade. Assim que houve a hipótese, nós sugerimos e eles aderiram, e nem pensámos duas vezes.
AV – Claro. Entretanto, o MOTELx continua a não ser só um festival de cinema: este ano continuam a apostar num componente formativo, com masterclasses e workshops.
JM – Essa é a parte mais importante, acho. Este festival foi criado segundo três objectivos – e quando nós nos “perdemos” lembramo-nos destes três mandamentos – que são o de passar o máximo de filmes possível com origens diferentes, não apenas cinema norte-americano; tentar trazer todos os anos um grande mestre; e apostar no estímulo da produção de cinema de terror em Portugal.
AV – O objectivo é deixar uma marca numa nova geração de potenciais realizadores de terror?
JM – Sim, exacto. É que não há uma escola! Já há uma escola de cinema, mas é uma escola mais do aspecto autoral, que é um problema do cinema português: envolves cem pessoas num filme, mas no final o filme é de uma pessoa só. E isso é uma mentira. Notas essa dificuldade, por exemplo, se fores ver um filme como O Cerro dos Enforcados, que tem coisas muito interessantes, mas notas que não há uma escola para aquilo. O próprio Macedo, que tentou fazer filmes de ficção científica, o que falha ali essencialmente é que não há formação de atores e técnicos para aquele género específico. Nós tentamos ao máximo aproveitar as possibilidades que hoje em dia há para fazer filmes, e tentamos dar ferramentas às pessoas para que possam aprender a fazer cinema pelos seus próprios meios.
AV – Por falar em portugueses a aterrorizar, o festival também continua este ano com o seu concurso pelo prémio de Melhor Curta-Metragem de Terror Portuguesa, que pelo que percebi teve este ano um aumento substancial de inscrições. Como foi o processo de seleção das 13 curtas em concurso?
JM – Vê-las todas e discuti-las até à exaustão! (risos) A nossa equipa no total são sete pessoas, todos fazemos de júri e todos fazemos programação. Somos sete pessoas mais uma gestora de produção e uma diretora de cópias, que entram numa fase mais tardia. Durante o ano vamos fazendo a triagem dos filmes, vou a outros festivais “descobri-los”… E sendo membros da Federação de Cinema Fantástico Europeu, vamos conhecer realizadores, vamos às reuniões da Federação, vemos filmes in loco, com público, o que é bem diferente de estar a receber e a ver coisas em casa no computador. (risos)
JM – Nós nunca fizemos isso, sempre foi muito jogo-a-jogo. O ano que vem talvez seja um bocado diferente, já temos algumas ideias que queremos juntar à volta do mesmo tema. Acho que a partir de agora temos de começar a organizar o festival com um ano de antecedência, até para facilitar à nossa sobrevivência. (risos)
AV – Só para terminar: já houve reações extremas aos vossos filmes, do género pessoas a sair da sala por não aguentarem?
JM – Ah sim… No Martyrs [de Pascal Laugier], por exemplo, houve gente a sair transtornada. No The Woman, do Lucky McKee, também houve uns quantos que saíram…
AV – Haverá muita gente a ter de sair este ano?
JM – Não sei… Eu acho piada quando as pessoas saem! (risos) Acho graça quando há reacções, a intenção também é a de provocar reacções. Não quero que saiam do estilo “nunca mais cá venho!”. (risos) Temos os nossos limites, e é bom quando as coisas ainda têm a força de provocar uma reacção em nós.
AV – Muito obrigado, João!
Podem consultar o nosso artigo com o programa do festival aqui.
Site oficial: http://www.motelx.org
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