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Os Maias – Cenas da Vida Romântica (2014)

O cinema de João Botelho está intimamente ligado a grandes obras literárias. Depois de estrear em 2010 Filme do Desassossego, inspirado na obra de Fernando Pessoa, o realizador português lança-se sobre uma das obras mais emblemáticas da literatura portuguesa: Os Maias.

O filme começa com a voz de Jorge Vaz de Carvalho a narrar integralmente a primeira frase do livro. “A casa que os Maias vieram habitar….”. Para os leitores aficionados da obra, este início trará imediatamente um sorriso nostálgico e uma suspeita que vem a confirmar-se mais tarde: o argumento é inteiramente composto pelos escritos de Eça, não contendo uma única palavra exterior ao livro. Este é um dos primeiros pontos louváveis na adaptação de Botelho: quem for ver o filme vai ver Eça; pelos olhos do realizador mas, indubitavelmente, Eça. Uma analepse leva-nos ao passado, a preto e branco, para conhecermos Pedro da Maia (Nuno Casanovas) e Maria Monforte (Catarina Wallenstein), cujo romance termina drasticamente com um suicídio e dois filhos separados: Carlos, a ser criado pelo avô e Maria Eduarda, que segue para o mundo nos braços da mãe. Mas Botelho não nos demora muito nos tempos de outrora, já que a obra é essencialmente sobre o presente. O de então e o de hoje.

Sem darmos conta, estamos em Santa Olávia, agora com paisagens coloridas pintadas em grandes telas pelas mãos de João Queiroz, dando de caras com João Perry a interpretar Afonso da Maia com o seu ar dócil, cansado mas vigoroso, e intemporal. João Perry oferece uma belíssima interpretação, recriando Afonso da Maia tal e qual como o imagináramos ou, pelo menos, como eu imaginei.

Mas é em Lisboa, no Ramalhete, que começamos a entrar verdadeiramente no espírito da obra. Apesar de não vermos a Lisboa da época – os cenários e paisagens são sempre as telas de João Queiroz, fazendo lembrar teatro – Botelho foi capaz de nos embeber no espírito que a obra de Eça exige seguindo por outros caminhos, desde a inteligente escolha dos diálogos à riqueza dos figurinos. Se por um lado ficamos algo dececionados por não podermos ver a Lisboa viva dos tempos de Eça, por outro compreendemos que a escassez de meios nunca o permitiria; e a entrada no Lodaçal – ou será que lhe deveríamos chamar Lisboa? – torna-se oficial quando vemos Carlos da Maia (Graciano Dias) no seu consultório e presenciamos a entrada triunfal de João da Ega (Pedro Inês), desfilando extravagante com a sua peliça e luvas de pele amarelas. Se Graciano Dias se prova eficazmente na aparente leveza e tédio aristocráticos de Carlos da Maia, Pedro Inês ultrapassa os limites do excecional na sua recriação de João da Ega. Chique a valer, diria Dâmaso Salcede (Hugo Amaro), que aparece, mesquinho e intriguista, tal como era esperado.

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Aqui Carlos da Maia (Graciano Dias) e Maria Eduarda Monforte (a brasileira Maria Flor).

Não há dúvida de que João Botelho consegue recriar aquilo que é essencial n’Os Maias: uma sociedade burguesa que, na sua pequenez, transborda de hipocrisia e falsas aparências, vivendo mais das palavras do que das ações. É fascinante que uma sociedade descrita há tantos anos atrás continue a ecoar pelo nosso presente. Na verdade, personagens como Cohen, o banqueiro, Tomás de Alencar, o poeta, e o Conde de Gouvarinho, não nos interessam como personagens mas como arquétipos. Como modelos intemporais, os personagens vão desfilando por esta Lisboa aparentemente rica até que Carlos da Maia conhece Maria Eduarda Monforte (Maria Flor) e tropeça num incesto que vem ditar não só a sua queda, mas a queda de uma sociedade inteira.

A adaptação d’Os Maias ao cinema consegue a difícil transposição das palavras para as imagens de uma forma muito inteligente. Os amantes da obra literária talvez sintam a falta de maior ênfase nos locais característicos que Eça descreve – o Grémio Literário, o Hotel Central, a Casa Havaneza – que, embora presentes, são pouco afirmados. Ainda assim, no compto geral o filme funciona muito bem e, acima de tudo, nunca desilude.

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